A pandemia não é sinônimo de crise econômica para a loja de veículos usados e seminovos que Raphael Caetano administra com sua família em Belo Horizonte. Pelo contrário. Desde março de 2020, o estabelecimento da família Caetano tem registrado o dobro de vendas do que costumava realizar até o início da crise sanitária, uma tendência que Rafael afirma se repetir em todas as 33 lojas do shopping de veículos automotivos em que estão instalados na capital mineira. O vendedor diz que a procura é tanta que até carros que costumavam ficar “encalhados” na loja são vendidos com facilidade. “Hoje o cliente compra um carro de 80, 100.000 quilômetros sem reclamar, e com preço acima da tabela FIPE [que é a referência no mercado]. Coisa que até um anos atrás eu jamais imaginaria que pudesse ocorrer”, diz.
As vendas de carros usados aumentaram 459,4% em abril de 2021 se comparadas com o mesmo mês de 2020. Também foram registrados bons resultados no acumulado do primeiro quadrimestre de 2021 que foi 40,7% superior ao mesmo período do ano passado. Um movimento que, guardadas as devidas proporções, se reflete em todo o país. A Federação Nacional das Associações dos Revendedores de Veículos Automotores (Fenauto), que engloba concessionárias de carros usados, aponta a paralisia da indústria de carros novos, com a parada na produção de dezenas de montadoras por causa da pandemia e com menor oferta de veículos, como fator de impulsionamento das vendas dos usados. A venda de carros novos caiu 31,6% em 2020.
O presidente da associação de revendedores, Ilídio dos Santos, aponta que também foi observado o fenômeno da “troca com troco”, ou seja, o consumidor optou por trocar o seu carro por um modelo mais antigo, e assim quitar dívidas contraídas em períodos críticos da crise sanitária. Além disso, houve o surgimento de um novo tipo de consumidor: aquele que antes utilizava o transporte público, ou compartilhado, e com a pandemia optou por comprar um carro próprio para evitar o contágio com covid-19. Explica-se, assim, a liderança de veículos mais antigos na procura do consumidor. Os com 13 anos de uso ou mais tiveram alta de 34,8% nas vendas e os de 9 a 12 anos de uso registraram a adição de 27,7%.
No entanto, apesar do otimismo com relação ao aumento da demanda, o presidente da Fenauto enfatiza que não foram todos os revendedores que conseguiram aproveitar o bom momento para o setor de carros usados. Com o “abre e fecha” causado pelas medidas de restrição, as lojas que não haviam se adaptado ao mercado digital não puderam fazer negócios, perdendo oportunidades para aquelas mais bem posicionadas na internet. É o caso da loja de Raphael. Com mais de 100.000 seguidores em sua conta no Instagram, o estabelecimento não deixou de vender mesmo quando não abriu as portas durante as medidas de isolamento social. “Com a pandemia, começamos a vender carros diretamente pela internet. O cliente via as fotos, conversava com o vendedor, depositava o dinheiro e nós mandávamos entregar na cidade dele, sem ele ter visto o carro pessoalmente. E não foram poucas as vezes que isso ocorreu”, comemora Raphael.
O fenômeno não acontece só no mercado de veículos particulares. No setor agrícola, os excelentes resultados da safra de grãos, acompanhados pela desvalorização cambial —que favorece as exportações—, geraram um quadro inusitado nas lojas especializadas em máquinas agrícolas. Em março de 2021, lojistas bateram a meta de vendas do ano em menos de 30 dias e muitos clientes que gostariam de adquirir ou trocar seu maquinário terão que aguardar pelo menos até março de 2022 para a entrega do produto. Um gerente de vendas, que não quis se identificar, conta que além da alta demanda, a fábrica —internacional, mas com montadoras no Brasil— está com dificuldades de adquirir os insumos para a sua produção, como ferro, aço, pneus e semicondutores. Por isso, tem orientado seus pontos de revenda a não fechar novos contratos até que a situação se estabilize, já que o fabricante não consegue estabelecer um prazo de entrega e há o risco de quando for o maquinário for entregue, os custos de produção tenham ultrapassado o valor pago na hora da compra, gerando prejuízos para a marca.
O boom e demanda reprimida no mercado de veículos é um dos retratos de uma economia em desarranjo na pandemia. De um lado, a incerteza política e sanitária corrói a confiança dos empresários para investir, por outro, as restrições de circulação obrigaram a uma menor produção. Do lado da demanda, o economista Felipe Bulgacov explica que, com a criação do auxílio emergencial no ano passado, por exemplo, a demanda manteve-se em níveis normais em alguns setores, ou quando caiu, foi menor que a queda da oferta. Para completar, os amplos pacotes de investimento em infraestrutura e consumo dos Estados Unidos e da China injetaram bilhões de dólares em suas economias nacionais, gerando demanda de produtos e insumos, inclusive o das indústrias brasileiras, que preferiram exportar a vender no mercado interno, por causa da intensa desvalorização cambial do real.
Construção Civil teme retração
Outro retrato do desarranjo é a construção civil, que também vive uma montanha-russa: alta na demanda, mas também falta de insumos. O setor esperava uma temporada difícil devido à pandemia e foi surpreendido com a estabilização —e, em alguns casos, até com o aumento da demanda. Em 2020 foi registrado um aumento de 9,8% na venda de apartamentos em relação à 2019. No ano da primeira onda da pandemia também foram financiadas 426.800 unidades imobiliárias, enquanto em 2019 a cifra era de 298.000. Ieda Vasconcelos, economista na Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), atrela os bons resultados do setor, mesmo com a pandemia, a uma série de fatores: a taxa de juros do financiamento imobiliário que variou entre 6 e 6,5%; o fato de a construção civil ter sido considerada setor essencial e, por isso, não ter parado suas atividades; e a ressignificação que as pessoas deram às suas casas, gerado pelo teletrabalho e estudos à distância.
Com o aquecimento do setor, gerou-se também o aumento na procura por insumos da construção civil, cuja oferta, salienta a economista, não acompanhou a tendência de alta demanda. O incremento substancial no preço de produtos básicos para o setor se deu em uma proporção equiparável ao período pré-Plano Real, ou seja, antes de 1993, quando as taxas de inflação eram galopantes. Vasconcelos esclarece que o Índice de Nacional do Custo de Construção (INCC) acumulou uma alta de 28,3% —a maior para o período desde que o índice começou a ser disponibilizado em 1998—, encarecendo a obra de quem estava construindo, reformando ou planejando construir.
Este é o caso de Évelyn Bianca dos Santos Martini, que iniciou as obras de sua casa própria em setembro de 2020. Com o valor da construção totalmente financiado, se viu em apuros para comprar os materiais necessários ante à escalada de preços. “Quando eu e meu marido começamos a construir, 1.000 tijolos custavam 420 reais. Poucas semanas depois o valor já era de 480 reais. Ficamos assustados e já compramos todo o material que seria necessário na época. Hoje 1.000 tijolos custam quase 800 reais nas lojas da cidade em que vive em Palotina, no oeste do Paraná. “Se fosse para começar a construir hoje, nem iniciaria. Os preços estão inviáveis e tudo demora para chegar, o que atrasa a obra”, desabafa Martini.
A alta no preço dos tijolos reflete a tendência dos insumos básicos da construção civil. O INCC aponta que muitos produtos tiveram aumentos de preço expressivos em apenas um ano. Os condutores elétricos, por exemplo, tiveram variação de 75,9%; tubos e conexões de ferro e aço (acréscimo de 66%); e tubos de PVC com aumento de 61%. Para Ieda Vasconcelos, uma das razões para a galopante alta nos custos está relacionada ao fato de que a oferta, há pelo menos um ano, não acompanha a demanda do mercado. “O setor acreditava que janeiro de 2021 traria uma virada de chave em questão de produtos ofertados pela indústria, mas isso nunca aconteceu. Estamos encerrando o primeiro quadrimestre de 2021 com o volume de oferta de insumos similar ao do início da pandemia”, diz a economista.
Vasconcelos enfatiza que o dilema que o setor da construção civil não é apenas uma questão econômica ou de prazos —produtos que antes eram entregues em até 15 dias hoje demoram de 60 a 90 dias para chegarem. A economista da CBIC destaca que em 2020 o setor gerou 106.000 novas vagas de empregos com carteira assinada, liderando a contratação em um momento em que o PIB brasileiro retrocede. Vasconcelos também destaca que além do problema que o setor enfrenta com a questão da falta de materiais e do aumento de preços, é necessário considerar as preocupações com a instabilidade macroeconômica, a desvalorização cambial, a inflação elevada, o avanço da pandemia e a vacinação ainda em ritmo lento.
Desempenho poderia ser melhor se oferta estivesse normalizada
As dificuldades impostas pelo desabastecimento de materiais e pela alta de preços fizeram com que o setor da construção civil recuasse para os mesmos patamares de julho do ano passado, quando ainda não havia uma completa percepção sobre os excelentes resultados que o mercado imobiliário viria a colher. Um informe produzido pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção demonstra que a estimativa do PIB para o setor em 2021 caiu de 4% — o que corresponderia à sua maior alta de 2013— para 2,5%, devido ao cenário imposto pela falta de insumos. “A retomada veio em V, mas hoje não temos suprimento necessário para atender à demanda. Por isso estamos defendendo trabalhar com o mercado exterior, ao menos para suprir essa carência atual”, disse o presidente da CBIC, José Carlos Martins.
A falta de suprimentos atinge todos os elos da cadeia de consumo. A loja de materiais de construção que Pâmela Andrade administra com sua família em Palotina aumenta como pode seus estoques para poder atender a demanda de seus clientes e ter maior controle ante à alta instabilidade dos preços.
A contratação de dois novos motoristas no último ano — o que aumentou a equipe da loja de 24 para 26 pessoas— é uma consequência direta do bom momento que a loja vive e também dos desafios em conseguir garantir produtos para entregar para seus clientes. Pâmela explica que antes da pandemia, o comum era comprar lotes de produtos, que ficavam estocados na fábrica até que o motorista da loja fosse buscar. Em geral, o galpão da loja em Palotina tinha uma alta circulação, e os estoques eram mínimos. A situação se inverteu desde o ano passado. Com a demanda aquecida e a dificuldade de fabricação de alguns produtos, as fábricas não fazem mais a venda antecipada. Leva o lote do insumo quem chegar primeiro, uma realidade que Pâmela disse não ter visto em nenhum outro momento.
E mesmo aumentando os estoques, há produtos que a loja da família Andrade não consegue entregar com a mesma velocidade do que antes da pandemia. O pedido de ferragens leva, no mínimo, 90 dias para chegar ao consumidor e os pisos e cerâmicas 120 dias. Além disso, a instabilidade nos preços tem gerado preocupações. Pâmela conta que no último ano deixou para fechar a compra de um lote de aço para o dia seguinte e na hora do pagamento foi informada que os preços foram reajustados em 15% em apenas 24 horas, sem qualquer aviso prévio da indústria.
Apesar dos desafios e da pandemia, a loja da família Andrade comemora os bons resultados, o qual, em grande medida, atrelam aos novos canais de comunicação com o cliente, como as redes sociais. “Quem soube se reinventar conseguiu aproveitar o bom momento do negócio”, diz Pâmela.
Fonte: /brasil.elpais.com
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